Não quero viver num mundo sem catedrais. Preciso da sua beleza e da sua transcendência. Preciso delas contra a vulgaridade do mundo. Quero erguer o meu olhar para o brilho dos seus vitrais e deixar-me cegar pelas cores prodigiosas. Preciso do seu esplendor. Preciso dele contra a suja uniformidade das fardas. Quero cobrir-me com a frescura seca das igrejas. Preciso do seu silêncio imperioso. Preciso dele contra a berraria na parada da caserna e o arrazoar frívolo dos oportunistas. Quero escutar o eco oceânico do órgão, essa inundação de sons sobrenaturais. Preciso dele contra o chinfrim ridículo da música de marcha.
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E, no entanto, existe ainda um outro mundo no qual eu não quero viver: um mundo onde o corpo e o pensar independentemente são condenados e onde coisas que fazem parte do melhor que podemos experimentar são estigmatizadas como pecados. (…) Entre todas as afrontas que do alto do púlpito foram lançadas às pessoas, uma das mais absurdas é, sem dúvida, a exigência de perdoar e até de amar essas criaturas. (…) Esse mandamento, esse desvairado e perverso mandamento do amor para como o inimigo serve apenas para quebrar as pessoas, para lhe roubar toda a coragem e toda a confiança em si próprias, e para as tornar maleáveis nas mãos dos tiranos, para que elas não consigam encontrar a força para se revoltarem, se necessário pegando em armas.
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não basta pôr simplesmente a Bíblia de parte, temos antes de a atirar fora, assim que estejamos fartos dos seus desaforos e da servidão que ela nos impõe. Manifesta-se nela um Deus avesso à vida e à alegria, um Deus que só pretende constranger a poderosa dimensão de uma vida humana
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Uma rebelião que se ateou em mim como uma labareda quando, pela primeira vez, ouvi as seguintes palavras: sacrificium intellectus.
Como é que podemos ser felizes sem a curiosidade, sem perguntas, dúvidas e argumentos? Sem o prazer de pensar?
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É a morte que concede ao instante a sua beleza e o seu pavor. Só através da morte é que o tempo se transforma num tempo vivo. (…) o Deus omnisciente, não sabe disso? Porque é que nos ameaça com a imortalidade que só poderia significar um vazio insuportável?
Não quero viver num mundo sem catedrais. Preciso do brilho dos seus vitrais, do seu fresco recato, do seu silêncio imperioso. Preciso das marés sonoras do órgão e do sagrado ritual das pessoas em oração. Preciso da santidade das palavras, da elevação da grande poesia. De tudo isso preciso. Mas não menos necessito da liberdade e do combate contra tudo o que é cruel. Porque uma coisa não é nada sem a outra. E que ninguém me obrigue a escolher.Pascal Mercier – Comboio Nocturno para Lisboa